quarta-feira, 2 de setembro de 2009


CONTROLE DA DISCIPLINA SEM SINDICÂNCIA E SEM PROCESSO

Léo da Silva Alves


Estamos numa cruzada pelo país implantando um novo sistema de controle das infrações disciplinares, eliminando sindicâncias inócuas e processos sem sentido. Rui Barbosa ensinou que “a justiça consiste em tratar desigualmente os desiguais”. Por isso, propomos, para quem erra, a correção; para o indivíduo pernicioso, o peso e o fio da espada.

Fala-se, com alarde, da necessidade de combater a corrupção no serviço público e, para tanto, periodicamente são desencadeadas medidas de alto apelo popular – todas elas pregando rigor na punição. Em regra, no entanto, são reações contra servidores de baixo e médio escalões, que resultam espremidos pelo rolo compressor de processos disciplinares instaurados sem critério, instruídos sem segurança jurídica e julgados sem atender as finalidade do Direito Disciplinar. Na margem, os verdadeiros corruptos, indivíduos perversos, de má índole, doentes morais, escapam porque contra eles não são empregados os recursos seguros de enfrentamento. Toda munição é gasta com o hiposuficiente.

Há 20 anos treinamos profissionais em Corregedorias. É tempo suficiente para conhecer as deficiências e para amadurecer alternativas. Desde o Encontro Nacional de Corregedores, em Natal-RN, em janeiro de 2006, temos mostrado que a Administração Pública eficiente deve tratar a matéria disciplinar sob a ótica da ciência, deixando à margem os procedimentos sem sentido, que se põem, por vezes, no caminho dos gestores, menos a serviço do Bem e do Justo e mais – ou unicamente - a serviço da burocracia inútil.

O Direito Disciplinar, enquanto ramo científico, tal qual o Direito Penal, deve primar pela correção e justiça. A Administração não pode patrocinar violências; não pode pretender retorquir uma eventual incorreção de conduta agindo, também, incorretamente; não pode se tornar elemento desagregador de valores, proferindo decisões temerárias, que arrasam a honra e aniquilam carreiras.

O custo de um processo disciplinar é altíssimo. A complexidade é enorme, com formalidades que tanto exigem conhecimento especializado quanto demandam tempo e recursos. Para aplicação de mera pena de advertência, é preciso desencadear um aparato processante, com gasto para o erário e enorme desgaste para as pessoas. E, ao fim, para tudo resultar na mera satisfação da burocracia. A finalidade – de melhorar o servidor e de melhorar o serviço – raramente é alcançada.

Em 1963, na Alemanha, surgiu o princípio da discricionariedade da ação disciplinar, pelo qual a autoridade administrativa, examinando o caso concreto, pode eleger uma solução alternativa à aplicação de pena. Sempre, obviamente, uma solução que atenda ao interesse público, aperfeiçoando o funcionário e dando ao serviço melhor qualidade. Isso não significa abdicar de um poder; significa, ao oposto, que a autoridade administrativa ganha mais um poder: o de eleger uma solução inteligente que atenda as razões do controle da disciplina.

O Brasil vem recepcionando novos institutos de direito, dentre eles a arbitragem, a conciliação, a transação penal e o ajustamento de conduta. Pois é exatamente o ajustamento de conduta o instrumento formal que ora se afirma. Por ele, o gestor moderno operacionaliza o princípio que veio do direito alemão. Desta maneira, o processo tradicional, dispendioso e ineficiente, é substituído por um compromisso moral, que restabelece a ordem em curto prazo. (Entenda-se que o que desestimula a infração não é a severidade de uma pena em tese. O que desanima o infrator em potencial é a presteza da resposta. E o ajustamento de conduta é uma resposta rápida.)

O Estado de Tocantins foi a primeira unidade da Federação a implantar, por lei, o modelo que propomos. Outros Estados o fizeram por normatização interna, como o Estado do Pará, na Corregedoria de Educação e na Corregedoria de Polícia Civil. O Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso foi além, avaliando, antes do ajustamento de conduta, mecanismos de prevenção e correção.

Cícero disse que “Direito é inteligência”. Toda solução que não for inteligente, não é solução jurídica: é mero exercício da burocracia inútil..

O controle das infrações disciplinares, segundo o melhor Direito, passa, na verdade, pelos seguintes instrumentos: a) prevenção; b) correção; c) ajustamento de conduta; d) aplicação de sanções.

A prevenção é instrumento da área de Recursos Humanos; a correção é instrumento das chefias imediatas. (Com isso, resolvem-se na base mais da metade dos incidentes que hoje se amontoam nas mesas das autoridades. Ficam as instâncias superiores com as causas remanescentes, para promoverem o ajustamento de conduta ou o processo disciplinar.) O ajustamento, para devolver, de imediato, para o serviço, um funcionário melhor; o processo, em caso extremo, para o enfrentamento dos indivíduos perversos, cuja presença no serviço público, aos poucos, vai se tornando insuportável.

Não se cria, com essa idéia, um direito novo. Interpreta-se e se aplica um direito que já existe, espalhado em normas e princípios. A Controladoria-Geral da União, pela Portaria nº 335, também faz a sua interpretação, ampliando os instrumentos de controle; vai além da visão restrita da sindicância e do processo disciplinar tradicionais. Isso mostra, portanto, que dentro do grande círculo do Direito Disciplinar há outras soluções. E atesta que, independentemente de se mudar a lei, é possível, por normas internas, fazer o ajuste da lei existente à realidade, às necessidades e à eficiência.

Por conta de processos improvisados, a maior parte das demissões é revertida pelo controle judicial. As decisões judiciais, no entanto, levam até décadas. Neste ano de 2008, o Supremo Tribunal Federal anulou um processo ocorrido em 1967. Isso significa que 41 anos depois, o servidor foi reintegrado (se vivo), aposentado (ou assegurada pensão para a viúva), mais a obrigação de pagar quatro décadas de salários e vantagens. Por isso, não é exagero afirmar que em todo processo disciplinar há um condenado: geralmente, é o contribuinte. Daí a relevância de se buscar instrumentos inteligentes.


Léo da Silva Alves é conferencista especializado em Direito Disciplinar. (leoalves@terra.com.br)
EXAME DE INSANIDADE MENTAL DE PSICÓTICOS LITIGANTES

José Armando da Costa
Advogado; Conferencista e Doutrinador
*publicação autorizada pelo autor.

Contaminado por aguçado sabor científico, conjectura a sabedoria popular que “de médico e louco, todos temos um pouco”. Contudo, destaque-se que esse diploma popular de médico e o seu adjeto atestado de loucura somente encontram franca ressonância na instância do vulgo. Na área da processualística jurídica (incluindo-se os procedimentos de todas as áreas), os correspondentes operadores do direito – por não serem dotados de aptidão técnico-médica para aferir matéria que tal, devem pelo meio próprio suscitar o incidente procedimental adequado, por meio do qual deva o insano suspeito ser submetido ao exame levado a efeito por esculápios afeitos a essa especialidade.
Na seara da processualística tanto judicial como administrava, o instrumento legítimo e idôneo é o incidente de insanidade mental. Esses agentes processantes, legitimados que são para tanto, devem, em face da percepção de tais indícios de insanidade, suscitar tal incidente.
Na área criminal, tal diligência se escora no art. 149 do Código de Processo Penal, o qual determina que, “quando houver dúvida sobre a integridade mental do acusado, o juiz ordenará, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, do defensor, do curador, do ascendente, descendente, irmão ou cônjuge do acusado, seja este submetido a exame médico-legal”. Já na cidadela disciplinar federal, “quando houver dúvida sobre a sanidade mental do acusado, a comissão proporá à autoridade competente que ele seja submetido a exame por junta médica oficial, da qual participe pelo menos um médico psiquiatra” (art. 160 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990).
Ainda que os vários estatutos dos servidores civis ou militares de outras esferas governamentais (Estados, Distrito Federal e Municípios) sejam silentes a esse respeito, deve, por analogia, ser estendida tal diligência para casos simílimos. Isso porque, perscrutando tais exames elementos ligados à definição da imputabilidade do acusado, não se lhe poderia retirar oportunidade para aferir se ele é, ou não, responsável disciplinar ou criminalmente. Uma vez que o pressuposto da responsabilidade penal ou disciplinar do acusado é a imputabilidade. Esta se define quando o indigitado autor esteja na plenitude de suas faculdades mentais. O que, na dúvida, é concluído pelo diagnóstico dos médicos competentes.
A matéria ora versada tem por escopo específico questionar a sanidade mental, com relevo jurídico, das pessoas avariadas por paranóias que os transformam em processomaníacos, querelómanos ou pessoas afetadas por psicose litigante. Parece não haver dúvida sobre a relevância dessa questão na seara tanto criminal quanto disciplinar. Com a finalidade de auxiliar as autoridades que possam eventualmente se defrontar com acusados transportadores de tais sintomas, fazemos transcrever abaixo os excertos médico-cientificos dos dois maiores expoentes da psiquiatria internacional, como segue.
Em primeira monta, revisitem as sábias lições de Enrico Altavilla:
“Uma variedade de paranóia, incômoda para a administração da justiça, é a constituída pelos querelómanos ou processomaníacos: neles, o delírio de interpretação funde-se com o de perseguição, que pode tomar um caráter reivindicatório, isto é, tanto pode constituir uma defesa contra a injustiça de que o doente se julga vítima, como uma atividade destinada a obter o que julga ser-lhe devido.
Escreve, com exatidão, Di Tullio:
“É determinado por um conceito errôneo e às vezes exagerado das leis e do seu processo, pela sobrevalorização dos seus interesses e dos seus direitos, pelo fanatismo em sustentá-los e pela errada convicção da existência de obstáculos destinados a impedir a sua realização” (Principi di criminologia clinica, p. 211).
A mentalidade especial do delirante paranóico, pronta a sobrevalorizar pequenas coisas , a interpretá-las em conformidade com uma idéia dominante, dirige-se à conduta processual do juiz e das outras partes e, finalmente, à sentença. É fácil que o juiz dê evidência, ao recolher as provas, a uma circunstância contrária aos interesses do paranóico, dirija uma palavra cortês à parte adversa, demonstre, pela cordialidade do tom, ser amigo do seu defensor; é possível que, na necessidade de adaptação de uma norma abstrata a um caso concreto, a lei seja aplicada com equidade, mas não com rigor jurídico; ora o querelómano registra estas pequenas coisas, atribui-lhes um valor excessivo, interpreta-as como manifestações de injustiça, de corrupção. Ao mesmo tempo, ele não tem uma visão exata daquilo que lhe pertence, de maneira que a mais justa das decisões, ainda que lhe seja favorável, parece-lhe uma velhacaria de que foi vítima. E pelo desejo de reagir contra uma injustiça judiciária, inicia-se a sua fastidiosa atividade de querelómano; por conseguinte, o delírio deriva de um insucesso judiciário, real ou inexistente, porque muitas vezes até o êxito favorável de uma causa se transforma, em virtude das desmedidas pretensões, numa derrota.
Estes enfermos ostentam, muitas vezes, um certo saber jurídico, mas é uma simples aparência, porque eles conhecem artigos e parágrafos, sem lhes ter compreendido exatamente o conteúdo.
Os querelómanos surpreendem, muita vezes, pela limpidez da sua consciência, pela memória intacta, por uma lógica aparentemente impecável, pelo conhecimento da lei, de maneira que podem enganar advogados e juízes, o que, fomentando o seu delírio, cria, ao mesmo tempo, graves perigos à justiça. Mas à medida que o mal se agrava, revelam-se também pelo seu comportamento.
Efetivamente, ao expor as razões em que esteiam as sua idéias, estes indivíduos não raro entram numa fase emotiva e de excitação mais ou menos viva, que tem sido chamada de atividade hipomaníaca logorréica e graforréica, mas que, no entanto, na maior parte dos casos, conseguem dominar, enquanto não explodem em manifestações clamorosas, apelando para a opinião pública, tornado-se freqüentadores das antecâmaras dos magistrados e dos diretores de jornais, chegando a exaltações perigosas.
Estamos, portanto, a examinar uma variedade de paranóicos no segundo estádio do seu delírio: perseguidos, tornam-se perseguidores ferozes, encarniçados, petulantes, que acusam denunciam, injuriam, ameaçam e chegam a ferir e a matar, desdenhando dirigir-se aos tribunais, que consideram injustos e corruptos. (Texto produzido por Enrico Altavilla, in Psicologia Judiciária, vol. II, p.236 a 238)
Sobre tal anomalia, que trata a mesma questão com a denominação de psicose litigante, obtempera Mira y Lopez:
“Em nome da “Justiça” revolucionária, Robespierre descarregou seus instintos tânicos sobre centena de vítimas inocentes. Em nome da “Justiça” divina, o inquisidor Torquemada cometeu os mais horripilantes assassinatos. Em nome da “Justiça” geopolítica, Adolfo Hitler lançou milhões de homens a uma morte tão terrível como estéril... Em nome da “Moral” – quando não se pode invocar a deusa das balanças – se desenrolam também, diariamente, atos nocivos, destruição de conceitos e prestígios alheios, que são mais penosos ainda que os próprios atos de sangue, pois estes se curam com repouso, curativos e antissépticos, em alguns dias ou semanas, enquanto que aqueles podem converter a vida inteira de famílias inocentes em um verdadeiro inferno, sem possibilidade de terapêutica.
O caso mais típico desta origem iracunda do impulso reivindicatório, é constatado nos freqüentes exemplos que a Psiquiatria tem trazido da chamada “psicose litigante ou pleitista”, na qual, a pretexto de cumprir a suposta vontade de um morto, de defender um suposto patrimônio ou de recuperar um suposto e inoperante direito, se descarrega sistematicamente uma atividade agressiva e maledicente, não só sobre o objeto inicialmente odiado, como sobre tudo quanto com ele haja tido relação e não se submeta ao domínio do litigante. Este se dirige primeiro ao Tribunal, depois à Suprema Corte, finalmente ao Presidente da Nação, depois ao povo inteiro, através da imprensa e do rádio; finalmente estende sua cólera a círculos cada vez maiores de pessoas alheias à situação desencadeante de sua ira. E termina “lutando só contra o mundo”, ao qual cobre de injúrias e imprecações; mas tudo isso faz o litigante, sem confessar-se que está atuando sob o impulso de uma tremenda força destrutiva; ao contrário, crê firmemente estar realizando uma obra de regeneração social e ética; faz-se campeão da decência, da equanimidade e da conseqüência. E desta forma podem arrastar-se pleitos quase seculares pelos Tribunais de Justiça, com grande satisfação íntima dos que vivem, talvez sem se dar conta, da cólera alheia, isto é, os maus advogados, chamados rábulas” (Quatro gigantes da alma, 25ª edição, José Olympio Editora, ps. 85 e 86).
Acredita-se que essa matéria possa ser de alguma serventia aos que, algum dia, tenham a desventura de se defrontar, como autoridade processual, com pessoas acusadas que sejam possivelmente acometidas de tal mal.
Fortaleza/CE, 17 de julho de 2009