terça-feira, 9 de junho de 2009

RESPONSABILIDADE PENAL OU DISCIPLINAR DO DELEGADO DE POLÍCIA NO EVENTUAL EXERCÍCIO DE JUDICATURA MATERIAL


José Armando da Costa

Advogado; Conferencista e Doutrinador

*publicação autorizada pelo autor.


Não há correspondência absolutamente necessária entre o órgão e a sua função. De efeito, pode-se deduzir que nem toda função de elaboração da lei é obra exclusiva dos órgãos do Poder Legislativo. O mesmo diga-se em relação aos Poderes Executivo e Judicial. Portanto, em sua função de soberania ou instrumentária, realizam atos que, materialmente, não estão compreendidos em sua função formal. Por exemplo, formalmente, somente ao Legislativo compete legislar. Ao Executivo, administrar; e ao Judiciário, julgar. Já em sentido material o Poder Executivo, excepcionalmente, legisla e diz o direito, o Judiciário, administra e legisla. E o Legislativo, por sua vez, jurisdiz e administra.

Como o direito não é obra de retórica nem mandinga de feiticeiro, rege-se pelo seu conteúdo material. Isso implica dizer que os atos administrativos materiais, prolatados pelo Legislativo ou pelo Judiciário, regem-se pelo regime do direito administrativo. As decisões administrativas editadas pelos órgãos colegiados da Magistratura não se sujeitam a recursos processuais, e sim ao controle de legalidade dos atos administrativos.

Deslocando-se para o campo específico das atribuições jurídico-legais dos Delegados de Polícia Civil, notadamente no campo do exercício da atividade de polícia judiciária (consistente em apurar o crime e sua autoria), verifica-se que essa autoridade, por força dos princípios processuais atinentes, e até mesmo como um imperativo do Estado de direito democrático, não se subordina, em suas convicções fático-jurídicas, aos seus chefes imediatos ou mediatos. Não há sequer subordinação ao Poder Judiciário. A autoridade policial se curva diante das determinações judiciais não por questão de hierarquia, e sim porque – como de resto todas as demais autoridades – se encontra sujeita ao controle constitucional de legalidade. Controle esse que é exercido exclusivamente pelo Poder Judiciário, uma das expressões da soberania nacional (art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal).

A judicatura, material ou formal, não comporta subordinação nem mesmo dentro da organização da função jurisdicional. Por isso é que um Juiz do primeiro grau não está obrigado a adotar o entendimento do órgão do segundo grau (tribunais). A não ser que se trate de súmula vinculante.

No exercício de polícia judiciária, a autoridade policial, em alguns momentos em que é escalado legalmente para decidir, realiza excepcionalmente função judicante material. Isso ocorre quando deva decidir se o caso que lhe é apresentado define-se, ou não, como flagrancial, nos termos do art. 302 do Código de Processo Penal. Competindo-lhe ainda dizer o enquadramento típico da infração penal, aferir se o caso é ou não afiançável (de acordo com o art. 322 e seguintes do diploma legal referido). Determinar, nos termos dos artigos 201, parágrafo único, do CPP, a condução coercitiva de pessoas envolvidas na prática de crime. Bem como a determinação de outras medidas que gere algum constrangimento ao indivíduo. Em tais casos, a judicatura material do delegado de polícia aflora a olho nu, pois que essas decisões constritivas – resultando do exercício regular de competência legal (princípio constitucional do juízo natural) – não podem sequer ser contrastadas nem saneadas na instância administrativa da autoridade policial (Secretaria da Segurança Publica). Por isso que o cidadão, preso em flagrante pela autoridade policial, não pode recorrer ao Secretário de Segurança, e sim à autoridade judicial competente. Em hipótese alguma pode o Chefe da Segurança Pública reformar ou revogar esse título prisional constituído pelo delegado de polícia. Isso é prova cabal de que o ato constrangedor da autoridade policial em hipótese alguma se circunscreve no âmbito da função administrativa. Daí porque somente por decisão judicial poderá a prisão em flagrante ser relaxada. O que, na prática, chama-se relaxamento do efeito coercitivo do inquérito policial. O que poderá ser feito sem prejuízo do prosseguimento dos trabalhos apuratórios.

O mesmo ocorre em relação à abertura de procedimento inquisitorial, em que este, uma vez instaurado pela autoridade policial, somente poderá ser fulminado por censura judicial de trancamento ou arquivamento, sendo tais atribuições impermeáveis à administração policial.

Outro tópico epistemológico confirmador de tal asserção encontra-se na definição da tutela jurídica dos crimes contra a administração da justiça. Donde se Infere que as atribuições de polícia judiciária guardam, pelo menos materialmente, conotação judicante. Tanto assim que os crimes de denunciação caluniosa, comunicação falsa de crime ou contravenção, auto-acusação falsa, falsa testemunha ou falsa perícia – previstos respectivamente nos artigos 339, 340, 341 e 342 do Código Penal – podem ter como contraponto tanto a autoridade judicial quanto a autoridade policial. A prática de tais ações delituosas na instância da polícia judiciária afeta a objetividade jurídica da administração da justiça. Falsear a verdade para o Delegado, nas hipóteses delitivas referidas, é o mesmo que mentir para o juiz.

Apresentado o conduzido à Delegacia, deverá a autoridade policial – depois de aferir sobre a existência de fundada suspeita contra aquele (no exercício de sua potestade judicante material prevista no art. 304, § 1º, do Código de Processo Penal) – mandar recolhê-lo à prisão. Tal atribuição, sob pena de trincar o catálogo das garantias constitucionais do cidadão, não deve ser exercida pela autoridade policial com temor à Justiça ou ao Ministério Público. Caso contrário, os constrangimentos ilegais irão prevalecer. Já que a autoridade policial – jungida a tais temores – sempre irá, mesmo que não conclua pela existência da infração em estado flagrancial (como assinalam as hipótese previstas no art. 302 do CPP), determinar a prisão da pessoa conduzida. Viés autoritário este que irá, sem dúvida, forçar a autoridade policial, por medo, a cometer imperdoáveis abusos de autoridade. E isso não convém ao Estado de direito democrático.

O mesmo diga-se em relação à percepção e compreensão do delegado quanto ao enquadramento do caso que lhe é afetado. Se num dispositivo penal mais grave, ou menos grave.

Ainda que haja erronias por parte do Delegado de Policia, e desde que elas não sejam dolosas, culposas, voluntárias, ou resulte de venalidades, não há que se falar em responsabilidade penal ou disciplinar. O erro – por deficiência intelectual ou por equivocado ponto de vista – não constitui tintura delituosa (disciplinar ou criminal).

Ressalte-se, contudo, que, havendo indícios de que haja obrado motivado por venalidade ou para satisfazer interesse ou sentimento pessoal, deve a autoridade policial sujeitar-se às instâncias penal e disciplinar.

O mesmo ocorre em relação aos membros da judicatura nacional. Censura pretoriana que, embasada em melhor direito, revoga ou anula decisão de primeiro grau, não constitui por si justo título para deflagrar a responsabilização criminal ou disciplinar do juiz. Já no caso de haver indícios de que agiu por venalidade ou por outros motivos ilícitos, deverá ser submetido a tais instâncias.

Caso discorde do pedido de arquivamento de inquérito policial pelo promotor público, deve a autoridade judicial encaminhar tal procedimento ao procurador-geral, a quem competirá discordar da ótica ministerial originária ou insistir no pedido de arquivamento do caso. Neste último caso, isto é, inferindo pelo acerto do pedido de arquivamento, somente restará ao juiz acatar. Discordando do ponto de vista do promotor, deve a chefia ministerial oferecer denúncia ou designar outro membro do parquet para que o faça.

Ainda em relação ao Ministério Público (órgão vital à regularidade da segurança jurídica e à defesa dos direitos difusos da coletividade), destaque-se que o nosso ordenamento jurídico admite ação privada nos casos de ação pública, quando esta não for interposta no prazo legal (art. 29 do Código de Processo Penal).

Nesses casos (ótica jurídica discordante do procurador-geral ou inobservância do prazo legal para oferecimento de denúncia), somente poder-se-á cogitar de responsabilidade penal ou funcional quando haja indícios de que o promotor público agiu motivado por corrupção ou mero interesse de proteção.

Afora os aspectos relacionados com prerrogativas funcionais que conferem aos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público maiores garantias processuais, não existe a mais remota distinção entre o proceder delituoso do delegado de policia, promotor e juiz. Já que todas essas autoridades recebem do ordenamento jurídico-punitivo o mesmo substrato intimidativo-pedagógico para embicarem no logradouro legítimo e escorreito de suas respectivas atribuições.

As mesmas garantias constitucionais oriundas do devido processo legal são extensíveis a todos eles. Assim, para agitar as instâncias penal e disciplinar contra essas autoridades não se despensa a existência de suficientes indícios.

Delimitando o agir do ministério público nacional, exige a Carta Magna deste país que tais órgãos ministeriais indique os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais (inciso VII do art. 129).

Adicione-se, ainda, que a abertura de qualquer processo judicial ou administrativo somente se legitima em face da existência do fato anômalo (definido como crime ou infração disciplinar) e de suficientes indícios de autoria. Sem isso, não resta satisfeita a garantia constitucional do devido processo legal (due process of law).

Ilustre-se, ainda, com a questão da responsabilidade civil oriunda do erro judiciário, em que o juiz somente é obrigado a indenizar quando tenha sentenciado de modo doloso, fraudulento ou culposo (sob a modalidade de negligência, consoante assinala o art. 133, e incisos, do Código Civil. Referindo-se a essa questão pondera Caio Mário da Silva Pereira:

“O juiz dirige o processo, assegurando a igualdade de tratamento às partes, procurando rápida solução para o litígio e assegurando a dignidade da justiça. Ao aplicar a lei ao caso concreto deve acertar, mas nem sempre pode, pois, humano, está sujeito a errar”.[1]

Sem dúvida que o juiz é humano, mas o delegado de polícia também faz parte da humanidade.


Fortaleza/CE, 14 de fevereiro de 2008.

[1] Responsabilidade Civil, 9ª edição, 2001, Forense, p. 139.

Um comentário:

  1. A ponderação doutrinária descrita pelo Dr. José Armando da Costa integra o rol de "Doutrinas Predominantes" que regem as instruções processuais disciplinares da Corregedoria Geral da Segurança Pública do Ceará. Para ver os outros temas tratados, acesse a página da SSPDS/CE (www.sspds.ce.gov.br) e vá ao link "Corregedoria Geral da SSPDS).

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